Vanguardas européias: o surrealismo em Portugal. Ou: do automatismo psíquico à portuguesa – O’ Neil e o abandono vigiado.

Cléa de Oliveira

O movimento surrealista português abrange um período muito curto, entre 1947 e 1952. Neste trabalho será dado destaque ao poeta Alexandre O’Neil (1924-1986), cujo afastamento do Grupo Surrealista de Lisboa é considerado como um dos marcos do fim do surrealismo português. Uma das razões dadas pelo poeta para o fato é de que ele não acreditava em automatismo psíquico nem total desligamento da realidade, daí, a criação do termo abandono vigiado: ver com a visão de dentro para conhecer o mundo ao redor.

The Portuguese surrealist movement encloses a short period very, between 1947 and 1952. In this work it will be given has detached to the poet Alexandre O’Neill (1924-1986), whose removal of the Surrealist Group of Lisbon is considered as one landmarks of the end of the Portuguese surrealism. One pf the reasons given for the poet for the fact is of that it did not believe psychic automatism nor total disconnection of the reality, from the creation of them watched abandonment: to see with the vision of inside knowing the world around.


        O final do século XIX e início do XX, sobretudo, é um período decisivo no desenrolar da História de Portugal. É nesta época em que a Monarquia cede lugar à República, por exemplo.
        A situação política portuguesa agravara-se desde os fins do século XIX, quando as raízes do republicanismo estavam bastante profundas no seio da sociedade, já havia, inclusive, um partido que defendia esta idéia com afinco, o Partido Republicano. O Ultimantum, em 1890, (ordem do governo inglês para a retirada das tropas portuguesas de Moçambique, para que o exército daquele reino pudesse circular livremente por suas possessões, vizinhas à colônia lusitana) deixa marcas no orgulho do povo português, pois acreditava-se que, por trás desse ato, havia o apoio incondicional do rei D. Carlos I à Inglaterra. Em conseqüência disso, popularizam-se, ainda mais as idéias republicanas.
        Anos mais tarde, em 1907, amparado no prestígio e na popularidade que ainda lhe restavam, o ausente e omisso rei tenta contornar a situação nomeando para o Governo João Franca Castelo Branco, conhecido político de idéias progressistas. Os republicanos insistem na derrubada do monarca com a finalidade de implantar, de uma vez por todas, a República. Todas as tentativas são frustradas. Em uma delas, no final deste mesmo ano, o resultado é a prisão e a sentença de desterro dos rebeldes. Todavia, um acontecimento fora das expectativas, vem modificar todo o quadro apresentado: em fevereiro de 1908, D. Carlos I e seu filho mais velho, Luís Felipe – o primeiro na linha de sucessão – são assassinados em uma emboscada armada pelos carbonários.
        A subida ao trono de um novo monarca, D. Manuel II, não serena os ânimos. A conjuntura está muito delicada e fica cada vez mais difícil para o jovem rei dominar a situação. Em outubro de 1910, o grupo revolucionário composto por republicanos e carbonários põe fim à Monarquia sem derramar uma gota de sangue: o rei é avisado em Mafra por telégrafo, partindo, logo em seguida, para o exílio na Inglaterra.
        O novo regime, a República, não gera a estabilidade tão esperada, pelo contrário.
        Diante da inoperância deste governo, em 1926, chega ao fim a I República. Igreja, burguesia e operários eram alguns dos muitos setores descontentes com aquele regime que planejara acabar com o catolicismo; não dera o apoio esperado às indústrias para o conseqüente fortalecimento da burguesia e a almejada prosperidade da classe trabalhadora. Em meio a toda essa desordem, um personagem vem à cena – António Salazar –, apoiado pela Igreja e pelo exército, permanece como peça principal do jogo por cerca de quarenta anos, até a sua morte em 1968, embora o salazarismo, como governo, só vá acabar em 1974. Durante essas quatro décadas de ditadura, Portugal é oprimido, ofuscado e isolado pela política empreendida pelo ditador: apesar de insistir na manutenção das colônias africanas, ainda era um país de economia agrária e o mais pobre da Europa.
        Além de acontecimentos como estes, que anunciam o desenrolar do século XX, os avanços da ciência levam o homem a desenvolver variadas tecnologias e a descobrir a cura de doenças que durante anos afligiram a toda humanidade. Essa mesma humanidade, apesar de ter convivido com as conseqüências desastrosas das duas grandes guerras, não é capaz de conviver em paz.
        Assim, em meio a todas as transformações pelas quais o mundo passava, entre o fim do século XIX e início do século XX, aparece uma série de novos movimentos artísticos – as Vanguardas11. Elas surgem na tensão entre o desenvolvimento e os problemas sociais que não foram sanados no século XIX.
        As vanguardas criticavam a maneira como o progresso engolia o homem moderno e como este homem estava tão absorto a ponto de não enxergar os efeitos da nova estrutura mundial.
        Os movimentos de vanguarda, apesar de diferentes entre si, apresentam em comum o questionamento da herança cultural legada pelos séculos anteriores, ou seja, há um consenso de que os padrões acadêmicos e envelhecidos da arte, que se tornara conservadora, eram fatos pertencentes ao passado. O novo século precisava de novos padrões estéticos, que fizessem frente a um sistema já falido de representação da realidade, surgindo, assim, um quadro de rupturas com tudo que se referia ao passado. Tinha início uma nova era com o Futurismo, o Cubismo, o Expressionismo, o Dadaísmo e o Surrealismo. Para Compagnon “a luta contra o conformismo e a convenção, a cruzada da criatividade contra o clichê teriam, pois, começado na metade do século XIX e, a partir de então, elas teriam simplesmente se radicalizado e se acelerado” (Compagnon,1996: 60).
        Desta forma, uma das questões trazida à tona pelas vanguardas era o papel da arte na sociedade burguesa, daí, seu caráter de autocrítica, não só em relação à arte, mas também em relação à estrutura social em que a arte está constituída. Na opinião de Peter Bürger, os movimentos históricos de vanguarda não puderam destruir a instituição arte, contudo acabaram com a possibilidade de uma determinada tendência artística de poder apresentar-se com a pretensão de validade geral. A ruptura histórica da arte inviabilizou certamente a chance de atribuir valores às normas estéticas, sejam elas quais forem. Com isso, surge uma renovação, ao se substituir a configuração estática do mundo por um mobilismo universal.
        Em 1924, André Breton publica o Primeiro Manifesto Surrealista, obra que viria sintetizar o modo de ser dos surrealistas: "[...] trata-se de uma nova atitude diante do mundo, postura que visa a emancipação do homem por meio da liberação dos sentidos, da exploração do mundo dos sonhos, da valorização do acaso, do retorno à infância" (Rufinoni, 2001, 47).
        O movimento liderado por Breton propunha uma oposição à lógica racional, ao bom gosto, ao realismo e às convenções artísticas; a exaltação de uma suprarealidade que poderia ser observada através de meios que objetivavam o espírito crítico. Os surrealistas buscavam no inconsciente uma explicação para as respostas mais intrínsecas do ser humano; fugindo do utilitarismo da sociedade, almejavam a libertação dos constrangimentos de uma civilização presa a determinados dogmas e regras; e, sobretudo, procuravam a recuperação de todas as energias humanas internas e desconhecidas através do automatismo. O automatismo é o método que “permite a descida dentro de si próprio até o domínio dos instintos, dos desejos recalcados, que é o da surrealidade” (Duplessys, 1983, 9).
        Nesta procura, o poeta surrealista, após chegar à imaginação, deveria regressar à superfície de si próprio a fim de enriquecer a sua personalidade com os achados de seu mergulho. Utilizando as descobertas de Freud para acentuar suas designações, a psicanálise ajudaria a interpretar todas as experiências feitas, todavia não bastava apenas a revelação destas verdades, era necessário que elas também se realizassem e para que isto ocorresse, os surrealistas visavam “a demolição através da transformação da existência humana" (Idem, 10).
        Para ser surrealista era preciso ser mais do que um artista que produzia a partir das técnicas praticadas pelo grupo – texto automático, descrição de sonhos, colagem, jogos, entre outras –, era preciso ter uma conduta surrealista: libertar-se de todas as amarras e censuras sociais, viver o amor e a vida intensamente.
        “Somente uma palavra é tudo o que ainda me exalta: liberdade.” É o que diz André Breton a certa altura do Manifesto de 1924, assim podemos observar que é para a concepção libertária que se direciona a nova doutrina.
        Quase vinte e cinco anos depois da publicação do Primeiro Manifesto (1924), artistas portugueses se reúnem para uma ação surrealista.
        Contudo não podemos formar uma idéia negativa desta diferença temporal, uma vez que em solo português, o movimento tomou rumo independente e autônomo daquele liderado por André Breton (Cesariny, 1985, 268). Diferentemente do desenvolvimento do surrealismo em outros países, em Portugal, o surrealismo se estruturou e se solidificou como um verdadeiro movimento de vanguarda.
        Até mesmo porque, em plena ditadura salazarista, estruturar o movimento nos moldes franceses era tarefa difícil.
        É importante ressaltar que o surrealismo português teve curta duração se comparado ao francês: vai de 1942 quando um grupo de alunos da Escola de Artes António Arroio faz reuniões no café Herminius – é a chamada fase proto-surrealista ou dadaísta do movimento – até 1951, com a (auto) expulsão de Alexandre O’Neill.
        Das primeiras reuniões, encontram-se entre os participantes Mário Cesariny, Vespeira, Pedro Oom, António Domingos, José Leal Rodrigues, Fernando José Francisco, Cruzeiro Seixas, Fernando Azevedo e Júlio Pomar. A luta contra a ditadura salazarista leva-os ao encontro dos neo-realistas, o que resultaria em novos contatos: Mário Cesariny conhece Alexandre O’Neill no café Cubana; Pedro Oom, António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira e Fernando Alves dos Santos tornam-se amigos a partir das idas ao café Lisboa Moderno.
        As relações entre neo-realistas e surrealistas não são duradouras, logo surgem atritos e desavenças. O insólito grupo se mantém até 1946, todavia, as sementes para a formação de um grupo cuja composição seria apenas de surrealistas já estavam em processo de fecundação. Isso pode ser constatado no seguinte: a pastelaria Mexicana recebe António Pedro, Cândido Costa Pinto, Vespeira, Fernando Azevedo, Alexandre O’Neill, António Domingos, José-Augusto França e Mário Cesariny para reuniões em que se elaborariam o projeto do movimento.
        As atividades do Grupo Surrealista de Lisboa começam a ser postas em prática no ano de 1948. Também ocorriam as sessões de discussões sobre as apresentações no Jardim Universitário de Belas Artes (JUBA) e a colaboração conjunta na Homenagem a Gomes Leal do Diário de Lisboa.
        Nos dois anos subseqüentes, os Surrealistas conseguem promover duas exposições: uma em 1949 com doze expositores e uma outra, de 1950, com apenas seis expositores.
        Em 1951, Alexandre O’Neill publica Tempo de fantasma, cujo prefácio foi considerado um insulto aos ex-companheiros. Como resposta a O’Neill é editado, pelo Grupo, o manifesto Do capítulo da probridade. O livro Tempo de fantasma marcou dois fatos: a saída de seu autor do movimento surrealista e, conseqüentemente, o fim do próprio movimento em Portugal.
        Entre 1956 e 1959 produz-se um novo reagrupamento no café Gelo, porém “a partir de finais da década de 50 não se pode já falar de Movimento Surrealista em Portugal” (Cuadrado, 1998, 34).
        É importante lembrar que estes artistas tinham conhecimento das técnicas e teorias desenvolvidas pelo grupo de André Breton. A organização do Grupo vem dar um caráter de movimento de vanguarda, enquadrando-o na proposta defendida nos manifestos surrealistas.
        O ano seguinte à fundação do Grupo, 1948, é marcado por duas rupturas significativas. A primeira é entre surrealistas e neo-realistas (união realizada, em 1944, para fazer oposição ao governo salazarista e que, em 1946, já dava mostra de grande desgaste), que será batizada por Fernando Azevedo de “ultrapassagem neo-realista”. A segunda ruptura dá-se entre os próprios surrealistas: é criado um outro grupo liderado por Mario Cesariny de Vasconcelos – Os Surrealistas ou Grupo Dissidente.
        O início dessas atividades chama atenção para outros dois pontos. Um deles é fato dos surrealistas não conseguirem viver em comunhão com grupos distintos, como pode ser verificada na tentativa de união ocorrida entre eles e os neo-realistas. Embora tal união não pudesse mesmo render frutos, uma vez que não partilhavam dos mesmos ideais e filosofia. O outro ponto a ser levantado é a dificuldade de convivência entre si. Os surrealistas não tinham senso de coletividade, como pode ser entrevisto em carta de Cesariny a Antonio Pedro: “por não acreditar que seja Grupo”. Porém, não é isso que impossibilitará que a poesia do grupo seja dita, pelo contrário, a impossibilidade fará com que ela grite alto.
        Outro exemplo de racha e outro exemplo de poesia gritada, poesia contrafeita, é o poeta Alexandre O’Neill e a sua saída, como já foi dito, do grupo em 1951. Alguns críticos consideram o abandono de O’Neill como fim do movimento em Portugal. Da mesma forma que não podemos balizar 1947 como o ano I das atividades surrealistas portuguesas, o fim do movimento neste país não pode ser precisado de forma tão simplista. No final da década de 50, há novos encontros, no Café Gelo, no intuito de estruturação de um outro grupo e a retomada de atividades surrealistas. Sem um grupo organizado funcionando dentro dos moldes propostos pelas vanguardas, o movimento surrealista esvai-se, em Portugal.
        Apesar da sua curta história – da formação do Grupo Surrealista de Lisboa às novas tentativas de reorganização da década de 50 – não podemos negar que o Surrealismo em Portugal teve muita influência sobre a poesia portuguesa da segunda metade do século XX. Na concepção de Perfecto Cuadrado, crítico espanhol, um movimento de vanguarda precisa possuir algumas marcas, como: organização e intervenção. Ou seja, precisa ter um ou mais grupos, ter alguém que lidere, ter personagens de presenças destacadas e seguir uma doutrina sistemática e elaborada “que deriva muitas vezes em dogmáticas e que traduz habitualmente em sucessivas excomunhões e incorporações” (Cuadrado, 1998, 9).
        Alexandre O’Neill não tem um percurso muito diferente dos outros artistas surrealistas. Antes de entrar para o Grupo Surrealista de Lisboa já havia feito algumas experiências plásticas, nas quais colava uma figura e a cobria de tinta, deixando algumas partes sem tinta, ia dando forma a outra figura.
        Artista de grande participação no movimento surrealista, sua produção é vasta, adentra a década de 80. Podemos destacar três obras interessantes de O’Neill. A primeira é um exemplo de sua inserção no movimento surrealista, é o folheto intitulado Ampola miraculosa (romance). A segunda obra, o livro Tempo de fantasma, destaca-se não somente como marco do fim do movimento, como dizem alguns historiadores, mas como início de sua carreira independente. É a partir da publicação deste livro que Alexandre O’Neill começará a falar sobre o “abandono vigiado”. Por fim, a terceira é o poema “Um adeus português”, de referência à mulher e ao amor. Com este texto, O’Neill mostrará toda a impossibilidade de viver o amour fou, o amor da teoria surrealista, na cidade de Lisboa.
        A Ampola miraculosa (romance) corresponde a um conjunto de quinze imagens recortadas de velhas revistas, para cada uma delas é feita uma legenda. A relação legenda e imagem não mantém o menor nexo, ainda assim, o trabalho é tido como uma narrativa. Podemos usar a designação genérica de “poema gráfico” para conceituar esse texto. Na opinião de Fernando Martinho, o que importa, é o exercício de imaginação e humor que o achado das gravuras, insolitamente deslocadas do seu lugar funcional, suscita.
        Quanto ao livro Tempo de fantasma, ele marca a saída de O’Neill, em 1951, do Grupo Surrealista. O prefácio do livro ficou famoso por ter sido visto como uma ofensa aos antigos companheiros. Nesse texto introdutório, O’Neill dizia nunca ter existido surrealismo em Portugal e sim uma pequena aventura: “o que há de mais surrealista no movimento surrealista português, é que, no fim de contas, ele nunca existiu” (O’ Neil apud Martins, 1995, 20). Essas palavras implicaram a publicação de um manifesto de autoria dos artistas do Grupo Surrealista Dissidente, chamado Do capítulo da probidade, como resposta.
        No poema, O’Neill deixa claro o seu aparte com o grupo (“já não é vosso o tempo/ viajantes do sonho“). Como fica claro, para ele não é mais possível viver a aventura surrealista. Para representar o que sente e vê não precisa do sonho. Ao mesmo tempo a liberação do sonho não é total – “é tempo de unir no mesmo gesto o real e sonho”. A expressão dessa síntese, na poesia de O’Neill, é o abandono vigiado.
        O surrealismo em Lisboa não pôde se realizar como em Paris, cidade da liberdade, para os artistas portugueses. Aquele era um tempo difícil para em Portugal. Esse tempo de opressão é expresso no poema “Um adeus português”, composto em 1951. O poema é dedicado a Nora Mitrani, artista surrealista do grupo de Paris. Em 1950, ela vai a Lisboa para fazer conferências no JUBA, que foram editadas no último número dos Cadernos Surrealistas, com o título “A razão ardente”, traduzidas por O’Neill. Ocorre um intenso romance entre os dois artistas. Nora volta a Paris, no ano seguinte, O’Neill tenta acompanhá-la, porém, é impedido pela família. Atendendo ao pedido da mãe do escritor, a polícia não libera seu passaporte. A viagem é adiada por alguns longos anos. O poema “Um adeus português” é a expressão da impossibilidade de viver o amour fou na cidade de Lisboa, no período pós-guerra.
        Sabemos que o amor é a espinha dorsal da filosofia surrealista. A revelação do conhecimento só pode ser obtida através do amor total, que tudo transforma e transfigura. O artista deseja a contemplação do sublime a fim de chegar à inspiração para as suas produções artísticas. Para Benjamin Péret, surrealista francês, o amor implica o mais alto grau de elevação, o ponto limite onde se dá a conjunção de todas as sublimações.
        A contradição de viver na cidade moderna pode ser visualizada através desta dificuldade de se identificar com o espaço.
        Em “Um adeus português”, o poeta organiza o texto em dois espaços diferentes: a asfixiante Lisboa e a almejada Paris, lugar de aventuras e liberdade. Ao fornecer para o seu leitor somente os dados positivos de Paris, O’Neill, ao mesmo tempo, deixa entrever as características negativas de Lisboa. Mostra como nesta cidade não há possibilidade para a realização amorosa:

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até a idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser.

        “Absurda de ser” e, por que, não “absurda de sofrer”? Afinal, temos aqui, mais uma vez, “uma velha dor” que caminha entre nós, nas ruas da cidade sem saída.
        No texto traduzido por O’Neill, “A razão ardente”, Nora traça o percurso histórico do surrealismo francês e apresenta longo estudo sobre as teorias bretonianas. Destaca a poesia, “não mais a involuntária, mas consciente de si” e “as possibilidades de que dispõe o ser humano para conhecer e, ao mesmo tempo transformar o mundo” (Tchen, 2001, 107), sem a necessidade de escola ou grupo. Segundo Nora, o “conhecimento verdadeiro das relações é dado a todos aqueles que ousarem empreendê-lo, tentarem a aventura” (Ibidem, loc.). Lembramos que é nesta mesma época que O’Neill publica Tempo de fantasma. É também na mesma época que o escritor sai do grupo e passa a falar e exercitar o “abandono vigiado”. Essas atitudes coincidem com as palavras de Nora, em suma o que importa no trabalho de um poeta é buscar a si mesmo, escrever de forma consciente e trabalhar na transformação do mundo que o rodeia, além do mais, ele pode fazer solitariamente, sem se ligar a grupos.
        O’Neill rejeita o chamado automatismo psíquico proposto por André Breton, no Primeiro Manifesto, por não acreditar na possibilidade de desligamento total da mente. Em conseqüência disso, a escrita automática seria tão impossível quanto o automatismo psíquico. Para O’Neill, o artista nunca poderia estar totalmente desligado do meio circundante, sendo assim, a representação do real demandava perceber o que estivesse a sua volta, seria preciso dar atenção e observar aquilo que está em torno.
        Muitos artistas surrealistas procuraram teorizar as ligações entre imagem, sonho, real e concreto. Louis Aragon, um dos artistas mais produtivos do grupo francês procurou definir imagem e real. Para ele, a imagem é um meio de processar o conhecimento e não simples ilusão. Já em relação ao real, ele diz que a sua apreensão é o julgamento do concreto e não o próprio concreto. Então, ao trabalhar as imagens e as diferentes realidades, o poeta estaria a revelar a “consciência possível” que é, nada mais nada menos, o próprio concreto (Aragon apud Gomes, 1995, 72).
        Mais uma vez, um artista surrealista fala do trabalho sobre o real, o concreto e o que está próximo de si e os relaciona à consciência. Isso lembra-nos a visão com os “olhos de dentro”, observada por Adolfo Casais Monteiro em sua análise sobre o olhar na consciência de Cesário Verde e com a qual aproxima este do movimento surrealista (1977).
        Percebemos, na obra de O’Neill, uma preferência pelo exato e pelo concreto, na medida em que esse exato e esse concreto encontram-se ao alcance de sua mão e são o real a ser trabalhado, como na definição de Aragon. Se o real já existe, o trabalho do poeta será o de adequar-se a essa realidade, ainda que seja um trabalho com “cinzel”, ainda que as palavras escolhidas pareçam duras, secas e concretas. O que não equivale dizer que quando se trabalha o concreto não exista uma “consciência possível”. A diferença está em como cada um chega ou trabalha essa consciência. Os surrealistas trabalham inconscientemente, procurando o que está dentro de si, O’Neill tem consciência do que está ao redor e como isso pode ser representado, ou visto pelo olhar dessa consciência, o abandono vigiado.
        Um bom exemplo a ser dado para o abandono vigiado é a série de inventários compostos por O’Neill.

Um ruído de torneira em plena missa
Um gato passeando pelo desejo
Uma esposa coberta de caliça
Um despejo

        O’Neill brinca com as palavras em um jogo ortográfico para demonstrar que o sentido que ele quer dar às palavras é o que está ali expresso e nada mais.

Venha cá você, palavra :alma!
Diga “boa-noite!” a esta senhora.
Não lhe mexa na mala.
Não lhe toque na lama.
Não lhe faça maal!
(Estas crianças!) Vá-se embora...

        Se O’Neill pretende observar o mundo ao seu redor desta forma, ele deverá possuir um olhar deambulatório que percebe, capta, sente tudo a sua volta com bastante acuidade. A leitura que fará da cidade de Lisboa partirá de um olhar cuidadoso, que vagueia à procura de respostas para as suas interrogações. É neste caminhar pela cidade e na leitura que faz do espaço que mais percebemos a influência de Cesário Verde em Alexandre O’Neill.

Doceiras do Amarante, barristas de Barcelos, rendeiras de Viana, toureiros da Golegã, não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço, galo que cante a cores da minha prateleira, alvura arrendada para o meu devaneio, bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

        Com efeito, o ato de ver é equivalente a conhecer e não mais a “um pretexto para fugir do real”. É aí, nesse exercício de visão, que Alexandre O’Neill, segundo Fernando Martinho, faz uma radiografia da sociedade portuguesa, “surpreendendo-a na sua mediocridade, nos seus ridículos, nos seus pequenos vícios provincianos” (1987, 48-56), tal qual os realistas do século anterior. Ele procura descortinar o real quotidiano e a cidade em sua poesia.

Tu que passas por mim tão diferente,
no teu correr vazio sem sentido,
na memória que sobes lentamente,
do mar para a nascente,
és o curso do tempo já vivido.

Sobre o seu modo de “ver” a cidade de Lisboa, Clara Rocha afirma:
Alexandre O’Neill emparceira Cesário numa poesia “deambulatória” pela cidade (Lisboa) de que ambos são atentos e experimentados “leitores”: “Eu sei ler a cidade” [...]. ler implica, em princípio, olhar e ver, e se já chamaram a Cesário “poeta do olhar”, também O’Neill o é, embora este repare certas zonas da cidade nunca descritas por Cesário. (Rocha, 1982, 24).

        A influência do poeta do Realismo não deixará de ser confessada por O’Neill. Embora tenha uma obra maior e um repertório mais amplo, em que se incluem personagens como cães, gatos, cisnes, moscas, velhos, crianças e grilos

(E num silêncio que toda a gente ouvia
Só a mosca deu sinal de si
Dizendo com graça e ironia
Ó Cesário Verde como eu queria
Que estivesses aqui!).

        No entanto, O’Neill não se esquece que é também preciso trabalhar as diferentes dimensões da consciência, que diante da impossibilidade de viver em uma cidade como Lisboa, capital de um país sob ditadura, o sonho pode ser uma possível saída da asfixia do autoritarismo, pode ser “a libertação da vida tal qual a vivem os outros homens” (Nadeau, 1985, 49).

Fui rejeitado a cotovelos pelos saldos
Vi um ouvires preso ao alfinete da gravata
a caprichar em filigranas
com um pé-de-avestruz americana
O cheiro do café recém-moído transportou-me a outras plagas
Vi as sangrentas luvas pinares sobre as cabeças transeuntes
Ouvi dizer a um tipo que bela fôrma,
e pensei que terás tu para lhe meter dentro?
Li num cabeçalho o passado tem olhos do presente postos no futuro
Embarquei em sapatos enforquei-me em gravatas
Descompus Cesário Verde que atravessava a rua
sobraçando uma chave-inglesa o descuidado
Contei os buracos duma roda de gruyère na montra daquela chacurtaria
        [que tem uns rissóis sabes de camarão

        A situação em que se encontra o sujeito lírico do poema acima, lembra-nos o sujeito do poema “Contrariedades”. Ambos sabem o que é viver à margem (“Fui rejeitado a cotovelos pelos saldos” ou “Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,/ Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,/ Um folhetim de versos.”), tendo de obedecer às leis injustas do mercado e da sociedade.
        A busca pela liberdade é uma constante na obra de O’Neill, que faz de sua escrita, semelhante a Cesário Verde, um grito de denúncia às “tiranias da modernidade” não importando de que modo elas sejam representadas.

Notas:

1 - A data de início das vanguardas difere conforme os críticos. Roger Shattuck afirma com veemência que os movimentos de ruptura começaram em 1885, com a morte apoteótica de Victor Hugo; mas ao mesmo tempo associa o início da vanguarda com o “Salon des Refusés”: “Pode-se estabelecer, arbitrariamente, o início da vanguarda em 1853, quando Napoleão III autoriza o “Salon des Refusés”(SHATTUCK, Roger. The Banquet Tears, p. 4). Já Ana Balakian em The Symbolist Movement enfatiza o simbolismo, especialmente a década de 90 como movimento que origina as vanguardas. Por outro lado, o trabalho de “Modernolatria et Simultaneità” de Pär Bergman é radical ao considerar o período que vai de 1909 até 1913, véspera da Primeira Guerra Mundial,

Cléa Moreira de Oliveira Cresta de Moraes é graduada em Letras pela PUC-Rio, mestre em Literatura Portuguesa (Lisboa: uma inspiração surreal na poesia de Cesário Verde, 2003) e doutoranda em Literatura Brasileira também pela PUC-Rio. Pesquisadora da Cátedra UNESCO de Estudos Avançados de Leitura. É revisora e tradutora francês/português da Coleção Multitexto (DCTCH/PUC-Rio). Co-coordena os projetos Poetas nos pilotis e Um dedo de prosa. Em 2005, participou de vários eventos, tais como, Sartre e Levinas: duas faces da alteridade e I Jornada Júlio Verne.

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